segunda-feira, 25 de maio de 2009

Outro olhar

por Camila Dalvi

Atualmente o brasileiro entoa entre risadas e tons graves um mantra que se encaixa em inúmeras situações. Diria até que se encaixa em qualquer situação, como resumo de tudo e única saída plausível. É como o antigo “tudo vira bosta” já cantado por Rita Lee. E mais uma vez o tudo se resume a essa estrutura linguística tão enigmática, tão fechada e completa em si que se mantém intacta, em pé, impassível e, ao mesmo tempo, líquida, escorrente pela boca do povo, que se distrai caminhos afora, adentro, acima, abaixo. Quer coisa mais abrangente e reducionista que o “Cada um no seu quadrado”?

Por essa repetição, tem-se uma aceitação do individualismo crescente. Cada um na sua, e você que não pise na linha, senão pagará prenda! Não se envolva com o outro, não procure saber dele. Repita para si sua série de procederes e viva conforme seu limite quadrático pré-estabelecido, povo marcado. Cada um na sua, seu quadrado! Ops, cada um no seu quadrado. Cada um cuida de si e somente de si. Claro, longe de mim achar que alguma pessoa do mundo seria realmente capaz de cuidar de outra coisa que não seja de si (e talvez nem de si ainda saiba). É no mínimo admirável, no entanto, que se proceda tão voltado para si, que só se veja o quadrado delimitado, em que se repetem atos impensados, com todo o cuidado da vida: não pisar na linha e não levar prenda. Meio behaviorista, não? Não pise e repita, repita como se manda. Ganham-se o elogio do reforço positivo e a ameaça do reforço negativo, a prenda, se tudo não entrar nos conformes. É esquisito olhar pro chão com medo de um limite e não, ao menos em um ato apaixonado e idealista, erguer os olhos e vislumbrar alguns longes inspiradores.

Esse mantra tem seus méritos: entrou na boca e na mente do povo e sub-repticiamente, rasteiro e esperto, ocupa os falares, os papos de esquina, as conversas sobre política, as críticas e aceitações. É sedutor ironizar a situação do país com esse mantra e um risinho de canto de boca no fim de uma discussão que não teve fim e, parece, desse jeito, não terá. É fácil detectar isso. Achar um fim diferente é que não é tão sedutor assim. É melhor posar de crítico, de cético. Ou ainda dançar conforme o quadrado. Quadrado este que, aliás, muito surpreendentemente, foi feito para tutoriar crianças e iniciá-las no funk. Outro mérito para ele: o funk é inevitável em nossa cultura (já que é a mídia e a preferência de muitos), mas as letras que combinam com a batida contagiante e sexual – espécie de dança de acasalamento contemporânea – não são viáveis para os ouvidinhos infantes de nossos consumidores mirins. Eis que surge uma musiqueta dita bem inofensiva, permeada de didatismo quase adorável (que ameaça com prendas e que dá elogios e que conduz a cada momento, explicando “agora vamos isso”, “agora vamos aquilo”, uniformizando, ato contínuo, a alegria alheia).

Mais do que depressa, dou-me conta da necessidade de se analisarem, passo a passo, os passinhos da música. Mais ainda se descobrirá sobre o imaginário nacional em relação àquilo que as criancinhas (e também adultinhos perversos) podem ouvir e dançar e devem valorizar. O início é até divertido – “Aí galera! / Tô chegando” – pois se trata de um coloquialismo acolhedor. E até convida a uma pseudo-fraternidade: “Vamos juntos!”. Leia-se, aqui, não a unidade entre amigos, mas sim todos juntos repetindo o mesmo para si, num mar de esforços perdidos, já que não unidos para a festa. Ainda assim, parece engraçado e tentador, ao ritmo das batidas. E o “cada um no seu quadrado” repete-se instintivamente, e, frenéticos, todos, felizes da vida, exalando energia, permitem-se entrar na festa. O “ado-a-ado” representa um eco di-silábico do que se quer, induzindo a percepção de uma rima, sendo esta, indiscutivelmente, elemento rico de musicalidade.

Qual não é minha surpresa ao ver que os primeiros elementos evocados são elementos puramente nacionais, sobretudo o primeiro, saci, figura do folclore brasileiro, sui generis, popularesco, próximo. Figura negra, de cachimbo e sem uma perna, mas que mesmo assim é alegre, aventureiro e ridente (de dentes muito brancos, ressalte-se): parece-me mesmo o brasileiro (ainda que sem condições boas de vida, continua pulando como pode, como dá, sorrindo, bem-humorado e fresco). O saci exige muita coordenação motora e equilíbrio, não é fácil ser um saci, não é mesmo? Inda mais quando se lhe impõe uma giratória, que todos repetem desafiados. Claudinho e Bochecha, espécies de pais do funk melody brasileiro, não fogem à regra: igualmente brasileiros, negros, felizes: dupla. Mesmo com a idéia dupla, cada um no seu quadrado tenta se fender a imitar o gestual memorável de bochecha, que Deus o tenha.

A Globalização não fica de fora, no entanto. Temos cawboys brasileiros, mas a palavra e a gênese da idéia não são brasileiras. E repetimo-los. Vem-nos o Matrix: filme e idéias extremamente complexos e americanos e virtuais, que são representados pelo ponto máximo: a fuga heróica dos tiros, encurva-se para imitar tal ato, que possibilita mostrar toda a elasticidade do corpo e o vigor da coluna. É muito jogo de cintura que se exige. O Robinho, habilidoso jogador, tão aparecente na mídia, por sua rapidez (e jogo de cintura, mas que obstinação!) também dá as caras. Afinal, trata-se de um elemento futebolístico, tão caro ao brasileiro.

Depois da primeira sessão: dance bonito e mostre que gostou. E, prepare-se, há muito mais. Bem didaticamente o animador avisa que vamos malhar. É polichinelo, Flexão, Bíceps: divertidos movimentos que se fazem ao som do funk. E que indicam a preocupação com o exercício físico e com o físico, claro. Depois surge o esporte, aquele que é vida, é (ou pode ser) um tema nobre, que resgata jovens do mundo do crime, que eleva o espírito, que é admirável. Lembrando do Pan no Rio, faz-se a alusão a essa constante que deve ser disseminada crianças afora. Corrida, natação, obstáculo ou não: é necessário muito equilíbrio para realizar todas as variantes sem se pisar na linha. Esses são, é fato, temas dignos de crianças e de nota. E adultos que estão cansados de funk pesados.

O Paquito – que diabos isso quer figurar? – dança, mostra que gostou e parte para a imitação de bichinhos. Macaquinho (animalzinho engraçado esse, não?), Gaivota (que voa no quadrado) e o atual famosíssimo siri, popularizado por outros programas de TV. Falando em TV e temas pop, eis que surge Dona Cicarelli. O leitor há de me ajudar a elaborar conclusões: o que Cicarelli faz aqui nessa música? Não me recordo... Ah, sim! Claro: modelo que representa ideal de beleza (que, hoje, é uma mistura de belo com magreza, como se procura nas mídias) e liberação sexual: afinal, quem tem algo a ver com a vida dela, não é mesmo? Nossos peitos juvenis merecem aprender essas lições. Bem como adultos, claro, os inventores e apreciadores da moda. Depois de Cicarelli, o astro-rei é justamente reverenciado: tenta-se imitar o sol, no quadrado. Afinal, sol nasce para todos, brilha para cada um dos quadrados: quem não busca, com seu quadrado (individualidade e egocentrismo), um lugar ao sol? Após isso, à maneira dos surrealistas, evoca-se o patinete (seria por um passeio ao sol, que deu suas caras?).

A dancinha estava legal. Até o momento de declaração: o quadrado do lado é do inimigo. Brigue com ele e se salve, ora – coisa que brasileiros tentam fazer todo santo minuto. Surge a lendária figura de Zidane, que, civilizado, porém, sangue quente, defendeu a honra das mulheres de sua família com uma cabeçada. E é isso que fica, ainda que ele tenha se desculpado do vexame depois. Empurra-se o inimigo depois disso, aquele mesmo que se dispôs da “dançar junto” com você no início da música. O próprio Robinho ressurge aqui com conotação negativa: “pedala no inimigo”, que seria um amigável tapãozinho na nuca. E, depois de tudo, reconhece-se que as briguinhas (aqui figuradas por elementos do futebol, do memorável e admirável futebol) são rápidas, bobas, inúteis. E instituem-se, através de um beijinho, a paz e o equilíbrio do mundo recortado em quadrados multicoloridos, maiores ou menores (será que existe a reforma agrária nos quadrados?). E esse beijinho, através de incentivo do animador da música, pode ser um selinho (claro, se for para criança, selinho póóóde) no inimigo do lado (independente ele qual seja. Afinal, na cultura brasileira, selinho é coisa comum mesmo). Só resta saber se esse selinho é beijo de Judas.

E o último aviso de todos: “E não pisa na linha!”. Segure-se. Fique bem, porque agora estou pegando meu quadrado e dando linha...